Harvard Health Publications
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8 de março de 2017Artigo de Opinião (Convite SBFTE) sobre a reportagem do Programa Fantástico da Rede Globo
Fev 7, 2017
Artigo de Opinião (Convite SBFTE)
Dr. Marcelo Muscará (USP)
No último domingo, 29 de janeiro, o programa “Fantástico” da Rede Globo veiculou uma reportagem sobre os medicamentos genéricos. No começo da nota, a apresentadora anuncia, de forma inexata, que o assunto desta “reportagem especial” era tratar sobre a eficácia dos medicamentos genéricos, para o qual o Fantástico encomendou a realização de testes in vitro no CEDAFAR (Centro de Estudos e Desenvolvimento Analítico Farmacêutico) da UFMG, centro credenciado pela Anvisa para realizar ensaios de equivalência farmacêutica para fins de registro (mas não de fiscalização) de medicamentos.
Antes de mostrar qualquer resultado, mostra-se uma sequência de opiniões sobre os genéricos (todas negativas) por parte de pacientes e prestigiosos médicos (incluindo professores universitários, presidentes de sociedades médicas e até um ex-secretário nacional de Vigilância Sanitária). Claramente, a partir deste ponto, o viés da reportagem já está definido, e uma variedade de conceitos equivocados, misturando eficácia do medicamento com liberação e absorção, vem logo a seguir.
Dentre os esclarecimentos aos telespectadores, ouvimos de parte dos responsáveis do Centro que os testes de dissolução in vitro nos permitem “prever a velocidade com que o remédio vai ser liberado na corrente sanguínea quando estiver dentro do organismo”, e que se trata de “teste que simula as condições do organismo” a fim de “verificar se a liberação do fármaco pelo comprimido está sendo feita de maneira adequada”. Felizmente, o próprio CEDAFAR corrige estes absurdos esclarecendo em nota posterior à reportagem que “para métodos de dissolução para os quais não foi estabelecida uma correlação in vitro-in vivo, o perfil de dissolução pode não representar a liberação do fármaco no organismo humano a partir da forma farmacêutica”. De fato, a inexistência de uma correlação in vitro-in vivo obedece a inúmeros fatores (por exemplo, a dissolução pode não ser o fator limitante da absorção in vivo, o perfil de dissolução in vitro depende fortemente das condições experimentais, a liberação do fármaco pode não ser controlada pela forma farmacêutica mas pelas condições no trato gastrointestinal, etc.). Infelizmente, estes esclarecimentos não chegaram aos telespectadores, e o dano já tinha sido feito.
O próprio jornalista responsável pela reportagem definiu de forma equivocada o teste de bioequivalência como aquele que serve para verificar “se o princípio ativo realmente está presente na corrente sanguínea nas concentrações necessárias para fazer efeito e também se depois ele é corretamente eliminado pelo corpo”, e justificou que por “uma questão ética, o Fantástico não realizou esta última etapa dos testes”, deixando no telespectador a impressão de que estes testes não são éticos. Ainda, nada foi passado para o público sobre o verdadeiro alcance destes testes, nem sobre a complexidade inerente à sua execução, seja no processo de recrutamento, avaliação e acompanhamento clínico dos voluntários, coletas de amostras, desenvolvimento de teste analítico, execução das análises bioquímicas, químicas e farmacocinéticas, estatística, etc. O Fantástico escolheu veicular o aspecto bombástico e perdeu a chance de educar o público sobre este assunto. O Prof. Odorico Moraes (UFC) estava lá para falar com propriedade e autoridade sobre o tema! Mas infelizmente a sua participação foi limitada, e ofuscada pela reverberância que preferiram dar aos resultados dos testes in vitro.
No teste de dissolução, uma das formulações de losartana analisadas mostrou-se abaixo do intervalo 95-105% relativo à formulação de referência (94,8%), deixando em aberto perguntas relativas a número de replicatas, sensibilidade e variabilidade experimental (tanto do método como entre as amostras). Mas em seguida, com base nestes números isolados, vem uma sequência de depoimentos negativos da classe médica (incluindo o ex-secretário de Vigilância Sanitária) e de médico cardiologista afirmando que “em cardiologia é utilizado esse conhecimento de 95%”. Será?
O coordenador do CEDAFAR avaliou o resultado como “grave” e afirmou que as marcas de losartana com perfil de dissolução diferentes das formulações de referência “mostraram que o princípio ativo que está no comprimido tem uma disponibilidade, uma liberação no organismo não condizente com o medicamento de referência”, e “o paciente fica desprotegido”. Além destes conceitos (totalmente errados!), um dos professores universitários reforça que a losartana é um vasodilatador e que “se o remédio perde a sua eficácia por algum motivo, o indivíduo corre o risco de sofrer consequências da pressão alta”, citando AVC, derrame e infarto como “consequências a longo prazo do descontrole da pressão”. Acredito que este tipo de declarações produz nos telespectadores, principalmente naqueles que estão sob tratamento com esta formulação de losartana, imediatas consequências emocionais, não importando já se o valor do parâmetro in vitro mensurado foi 94,8% ou 9,48% com relação à formulação de referência. Pergunto-me: era necessário tanto terrorismo por um 0,2% de diferença num teste in vitro?
Felizmente, o Prof Odorico Moraes relativizou a importância deste teste na biodisponibilidade do medicamento quando coloca que a análise de bioequivalência “é soberana sobre os testes in vitro“. A seguir, o jornalista rende-se e esclarece que a losartana é um medicamento de uso contínuo (e que por isso o fato do “seu perfil de dissolução não ser idêntico ao da referência não é tão crucial”) no intuito de minimizar o impacto dos achados. Mas, novamente, o dano já tinha sido feito.
De forma muito clara, esta foi a tônica da reportagem do início ao fim: aperta e afrouxa. Consideremos que as impressões que estas informações (flutuantes) deixam na nossa mente não se anulam. Seria como pregar um prego num pedaço de madeira e retirá-lo depois; uma ação não anulou totalmente a outra, o furo ficou. Neste caso, fica no telespectador a desconfiança e o sentimento de desproteção, os quais geram insatisfação e revolta. Quem ganha com isto?
Considero oportunas as considerações emitidas na nota da CEDAFAR no sentido de que “a realização de programas mais efetivos para o monitoramento contínuo da qualidade de medicamentos (referências, genéricos e similares) se fazem necessários, com ampla divulgação dos resultados à sociedade.” Certamente o fato da losartana ainda não constar na farmacopeia brasileira, e assim dar ensejo a discussões sobre as metodologias de análise, é uma deficiência que deve ser prontamente sanada pela ANVISA.
Falando sobre o mercado de medicamentos genéricos, o jornalista diz que “no Brasil, 16 anos depois da aprovação da lei dos genéricos, não passa de 30%”. Faço aqui algumas considerações. Consultando a base de dados Pubmed (website para busca de artigos científicos na área biomédica), pode-se verificar que o primeiro estudo de biodisponibilidade em humanos foi realizado nos EUA e data de 1969, o que de alguma forma explica porque neste país 75% dos medicamentos comercializados são genéricos. No Brasil, a lei dos genéricos vigora desde 1999, e o primeiro estudo de bioequivalência foi publicado em 1991. Assim, não parece difícil enxergar que a nossa desvantagem de 30 anos de experiência em relação aos EUA está certamente refletida no mercado. Este tipo de análise, entretanto, o Fantástico não fez. Até o fato das matérias primas serem provenientes da Índia e China foi colocado como parâmetro válido para desqualificar os genéricos. Por acaso, estes insumos são de outra origem nos medicamentos de referência e similares? Na economia globalizada atual estas considerações são, certamente, anacrônicas. Exemplo: o design do computador que estou usando é da Califórnia, mas a montagem foi na China… É necessário falar mais sobre este ponto no século XXI?
Na conclusão da nota, o jornalista apresenta dados relativos ao número de genéricos aprovados pela ANVISA, volumes de venda dos princípios ativos analisados, etc., e lembra os resultados (negativos) obtidos pelos “testes do Fantástico” sem mencionar a discussão prévia sobre a relevância e a interpretação dos dados experimentais, assim criando no telespectador a nítida imagem de uma ANVISA 100% ineficiente. Entretanto, o jornalista resguarda-se sob o guarda-chuva das opiniões dos “especialistas sérios e respeitados” que participaram da reportagem, os quais ainda se auto-atribuem autoridade para recomendar ao paciente este ou aquele laboratório, com base na “reputação no mercado”, uma atitude que é reforçada na sequência pelo apresentador do Fantástico no encerramento da nota.
Concluindo, considero que ao longo dos 30 min da reportagem, longe do preconizado no seu título (“Testes revelam verdades sobre medicamentos genéricos no Brasil”), foi reforçado, de forma totalmente desnecessária (e com bases bastante voláteis), o sentimento de desconfiança de uma parte da população em relação aos medicamentos genéricos, deixando os “medicamentos de marca” por cima (e não no nível) destes, derrubando assim o conceito de “intercambiabilidade” que norteia a lei dos genéricos. De forma nítida, esta tendência da nota, situou-a muito distante da objetividade e seriedade requeridas quando a saúde é o assunto em pauta. Os “por que” e “para que” ficam no ar.
Dr. Marcelo Muscará é Professor Associado do Departamento de Farmacologia (ICB-USP), possui livro e capítulos de livros publicados na área de farmacologia, além de ser autor de mais de uma centena de artigos científicos na área de farmacologia. O professor Muscará também atua como membro titular da Sociedade Brasileira de Farmacologia e Terapêutica Experimental (SBFTE), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), International Association for Dental Research (IADR), British Pharmacological Society (BPS) e Inflammation Research Network of Canada (IRNoC).